quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

CORREDEIRAS


Depois de muito tempo, encontro minha função nesse corpo ínfimo, nessa dose de espírito, nessa partícula de poeira. A minha função é transcorrer cada cor tua, cada traço e cada expressão desta tela através da humildade de minhas letras brincalhonas. Essas, que só aparecem de vez em quando, que chegam ao romper da sua noite, quando já não se vê mais luz nem rostos, quando você repousa em seu íntimo que até ti mesma desconhece por inteiro. Minhas palavras vem hoje, pela tua manhã, com seu passo embriagado de poesia errada na forma colorida, te contar uma história. 

Trago a história de dois rios. Duas artérias de rios, que mesmo antes de se tornarem rios propriamente ditos, se uniram em um desalento confortável numa noite quente que foi tão singular e incomum, que seu calor provocava arrepios frios em ambos os rios. 

O primeiro deles era Amatsu. 

Amatsu percorria todo o ocidente, passando por caminhos rochosos e dolorosos. Há de se lembrar disso: Amatsu era jovem, porém sua alma ultrapassava milênios. Era rápido e perspicaz. Sabia das dores do amor e suas armadilhas, assim como já se deleitara por diversas vezes nas luxúrias e carinhos que o amor tivera lhe proporcionado. Porém andava cansado dos mesmos amores, mesmos sentimentos, mesmo desdém e mesmo final. Já conhecera todo tipo de amor, que no começo mostravam-se diferentes e frutíferos, porém repetitivos ao primeiro trincar de confiança. Vivia numa aldeia simples onde partilhava alimento com um grupo de camponeses e suas famílias. Sua história começa a se desmembrar com a chegada de Kunlun. 

Kunlun, jovem encantadora de províncias do oriente, tinha uma sensibilidade com o ambiente ao seu redor que poderia até chamar de algum dom especial que obteve. Em suas telas feitas de pergaminho desgastado, misturando um pouco de carmim à base de óleos vegetais, formava desenhos que surpreendia a qualquer um que passasse pela província do Oriente. Tinha cabelos negros, pele beijada pelo sol, e olhos intensos. Quando fitavam alguém, eram capazes de arrepiar até mesmo os mais gélidos. Kunlun tinha uma personalidade forte, fechada e discreta, porém quem conseguisse dissolver a muralha que ela criava para si mesma como defesa, e alcançasse seu interior, se perderia, como em um labirinto de emoções. Acho que podemos traduzi-la assim: um labirinto de emoções. 

Kunlun se envolvera algumas vezes. Uma coisa ela tinha certeza: nunca havia amado ninguém. Conversava com si mesma e dizia que 'Poderia sim, ter tido afeto, consideração e carinho por alguém..., mas amor? Não. ' Tinha um lado sentimental que ninguém conhecia, e guardava-o, se fosse preciso um dia. Caso não fosse, não faria falta. Kunlun aprendeu que tem de amar a si mesma. Certo ou não, isso ajudou-a a manter sua calma em relação ao sentimento, e manteve firme sua adoração por pintura e música. Ninguém podia tirar isso dela, e sendo assim, sentia-se satisfeita. 

A aldeia de Amatsu se encontrava a milhas de distancia das terras de Kunlun. Para melhorar as coisas, no caminho a percorrer ainda se podiam encontrar grandes punhados de montanhas e trilhas sinuosas. O povo de Kunlun não aceitara de modo algum a convivência e nenhum tipo de relação com a aldeia de Amatsu. Por anos haviam confrontos intermitentes e conflitos que derramavam sangue. Nem mesmo a lua permitia tal acontecimento. 

Amatsu, sempre curioso e a procura de liberdade, havia se perdido na rota da aldeia, e após dias, encontrou um pequeno amontoado de terra com grama repousada por toda a parte para descansar. Kunlun se encontrava ao topo, e como de rotina, desenhava os traços do alvorecer e uma parte da lua que ia se formando, tímida, porém sempre vigilante. Naquela época, a lua imperava sobre qualquer forma de vida que existisse, e suas leis eram fielmente seguidas à risca. A lua sentia-se formidável ao mirar Kunlun copiando suas curvas e contornando seu brilho admirável perante toda a humanidade. 

Eis que surge Amatsu, ao canto desse monte, com olhar de menino curioso para Kunlun. Ela, pelo seu dom de percepção, nota que está sendo observada. Amatsu aparece em sua frente. Ela se assusta, porém fica imóvel. Não trocam uma só palavra, nenhum tipo de som ou frase. Apenas se olham, como se seus olhos tivessem se encontrado anos após uma despedida. Ficam ali, se olhando durante muito tempo. A lua, enraivecida, desaparece. 

Durante todos os dias, Amatsu e Kunlun se encontravam. Em todos os encontros, os olhares se cruzavam, como se a saudade esmagasse cada parte de seus corpos. Era como uma queda d'água sob o coração de Kunlun. Realmente, tinha encontrado um ser que conhecia cada parte dela, sem ao menos terem se comunicado. Sentia-se tão feliz que tinha até medo. Era uma explosão de felicidade em seu labirinto de emoções. A cada encontro, a cada despedida, a cada olhar, ela sentia que conseguia captar o toque das mãos de Amatsu, o gosto do encontro de seus lábios sobre os dela, e até mesmo o peso de seu corpo sob o colo frágil de suas pernas. Sentia-se querida, e queria ao mesmo tempo. 

Amatsu respirava Kunlun. Não dormia, não pensava e nem sonhava mais. Sentia-se parte dela, como se ambos tivessem a mesma alma, e tivessem sido separados justamente para se encontrarem e permanecerem juntos. Não voltava a dias para a aldeia. Simplesmente esperava a mesma hora de todos os dias, e ia de encontro a Kunlun, para observá-la cada vez com mais detalhes diferentes, com uma essência diferente. 

Numa noite, tudo pairava diferente. Os ventos não sopravam delicados, os calores já não era tão confortável. Kunlun previa acontecimentos ruins. Amatsu não percebera, preocupava-se apenas em se encontrar com sua doce menina. Ao chegar no monte, o coração de Amatsu simplesmente parou. Não sentia sangue em suas veias, sua pulsação havia congelado com o que acabara de ver. 

Kunlun se encontrava imóvel, do mesmo jeito de todas as noites anteriores... Porém havia lágrimas. Lágrimas cobriam seu rosto como uma enorme tempestade de tristeza pairando em seu peito. Amatsu se desesperou. Correu para aproximar-se, mas o que viu atrás dela o deixou perplexo. A lua, a imperadora de toda a rainha dos destinos, estava avermelhada e com uma energia pesada, carregada. Num salto, suas formas tomaram um tom negro. Havia descido na terra, naquele mesmo monte, na forma de feiticeira. Amatsu e Kunlun permaneceram imóveis. Ambos tentaram se mover, mas toda e qualquer partícula de seus corpos permaneciam intactas. A lua, por sua vez, começou o discurso. 

"As minhas leis devem ser obedecidas por qualquer um que viva e pise neste solo. Vocês desrespeitaram a lei maior, e por isso serão castigados. Serão condenados a viverem para sempre, numa busca incessante um pelo outro. E que assim seja." 

A partir daí, formou-se um clarão pelo monte, cobrindo Amatsu, Kunlun e a própria lua. Esta por sua vez, desapareceu em névoa. A lua havia transformado Amatsu e Kunlun em dois rios. Um corre pelo Oriente e outro pelo Ocidente. O mistério dos rios é que não existem duas nascentes. Eles começam no mesmo monte, praticamente a alguns centímetros de distancia um do outro. Dizem que seu castigo é desabarem água por toda a eternidade, como se um procurasse pelo outro, como se procurassem a mesma troca de olhares à mais de mil anos atrás. A história se fortifica quando é verificado que os rios terminam em mares diferentes, nem assim podendo se misturar. O rio Amatsu e o rio Kunlun ficam mais fortes em Lua minguante. Dizem que é quando a Lua se esconde, e eles tomam velocidade para se encontrar de novo. 

Em que eu acredito? Que Amatsu e Kunlun não se procuram. Correm juntos. Sabem que o que sentem é mais forte que seu próprio encontro. Basta pensar, e num minuto, eles se reencontram em seus sonhos. Se olharem e sorriem, numa interminável noite quente de arrepios.

PEDRO THOMAZINI

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